No dia 21 de outubro, o Instituto dos Advogados do Distrito Federal (IADF) promoveu o Almoço Cultural, evento que reuniu profissionais do Direito para um momento de reflexão e debate. O destaque da ocasião foi a palestra do Ministro Pedro Gordilho, que, com a apresentação do Orador Oficial adjunto, Doutor José Perdiz, abordou o tema “Advocacia, antes e depois da Constituição Federal de 1988”.
Durante sua intervenção, Gordilho compartilhou aspectos de sua trajetória profissional e destacou as mudanças significativas que a advocacia experimentou após a promulgação da Constituição de 1988. Ele discutiu as dificuldades enfrentadas pelos advogados ao longo dos anos e ressaltou os princípios e valores que devem nortear a profissão.
A Ministra Eliana Calmon, Diretora Cultural do IADF, também se pronunciou, enfatizando a importância do trabalho do Orador, Doutor José Perdiz, destacando sua capacidade de representar a advocacia com seriedade e comprometimento.
Confira o discurso abaixo:
A ADVOCACIA ANTES E DEPOIS DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 1 ( * )
“Pourquoi être avocat? Être avocat
afin de rester un homme libre qui
ne demande ni ne doit rien a personne”.
Jacques Isorni
Uma correção: não sou “o príncipe dos advogados”, como consta, amavelmente, do convite.
Sou um súdito do direito, da democracia e da república, tendo sempre presente o juramento que fiz ao receber a carteira das mãos do saudoso Ministro Décio Meirelles de Miranda, em 1961, então Presidente da OAB/DF.
É quanto me basta para poder lhes falar sobre o exercício profissional, tendo vivenciado a sucessão de Jânio, o golpe institucional do parlamentarismo, o golpe militar de 64, o auto-golpe de 68 e os variados e oponentes episódios que, reaquecidos, encontram-se ainda em erupção.
Falar sobre advocacia para advogadas e advogados de sucesso, notabilizados, já consagrados, é uma atitude imprudente, diria, mesmo, irrefletida de minha parte. Principalmente por que “a única coisa que sei é que nada sei” (Sócrates). Mas tenho sentimentos vivos para apreciar a alvorada no Planalto Central, a Olimpia, de Monet, a obra de
( * ) Palestra apresentada por Pedro Gordilho no almoço cultural do IADF, realizado no Restaurante Bloco C, em 21.11.24.
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Renoir, a Sinfonia de Leningrado, de Chostackowsky, a obra Memórias do Além Túmulo, de Chateaubriand, a Bachiana n. 5, de Vila Lobos, a obra de Proust, de Thomas Mann, de Freud, a poesia de Castro Alves, de Drummond, Neruda, a prosa de Guimarães Rosa. E muito mais. Mas vou tentar reunir e expor conceitos e observações colhidos nesses 63 anos de exercício ininterrupto.
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Foi muito penoso advogar a partir de 1964. Até a promulgação da Constituição de 88.
A tarefa do advogado, como defensor militante dos direitos humanos, se apresentou ainda mais relevante, numa sociedade e numa época em que os valores jurídicos fundamentais se encontravam sob ameaças graves, riscos e atos de supressão e de negação, que lhes atingiram a própria sobrevivência. O direito estava engessado pelos curadores de plantão.
Num mundo em crise aguda e generalizada, de insegurança, de instabilidade e de transformações radicais, como então vivíamos, e no qual se ressalta a interligação dos destinos de todos os povos, a missão tradicional que incumbe ao advogado se tornava mais difícil e arriscada, e, por isso mesmo, mais imprescindível e gloriosa. E, sobretudo, exigindo coragem e destemor.
À medida em que se estendia o domínio do arbítrio, que se multiplicavam as leis iníquas ou demagógicas, que o poder insaciável ampliava as suas prerrogativas, através do mau intervencionismo do Estado, em expansão crescente, tornava-se cada vez maior a desproteção dos direitos e liberdade do homem e do cidadão,
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acentuando-se a responsabilidade do advogado e dos seus deveres, na batalha diária que lhe cabe sustentar.
Certamente, o cenário que vivemos, a partir de 64, em convulsão, entre aflições, angústias, torturas e prisões de brasileiros, dentre eles muitos advogados – desgraçadamente cada vez mais carregadas de pessimismo –, tem profundidade e repercussões realmente alarmantes.
Abalaram-se os alicerces que pareciam mais resistentes: toda a estrutura esteve sob permanente ameaça de desmoronamento. Foi uma sociedade que perdeu o seu centro de gravidade, e se viu sacudida pelos ventos da insânia, sob o risco de submergir na desagregação e no caos.
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É inconcebível que o jurista, o advogado se insurja contra a evolução, se rebele contra as transformações inelutáveis do sistema jurídico, ou se oponha às reivindicações em favor de uma ordem social mais equânime e equilibrada, pela restrição dos privilégios e pela consagração de direitos, que atendam ao bem-estar individual e coletivo, reduzindo as razões de revolta e os conflitos de grupos ou classes. Pelo contrário. O inverso é que é o desejável.
Numa sociedade sulcada pelas divisões ideológicas e abalada pelos choques das correntes, que se contradizem e se repelem com veemência, a elaboração do direito há de refletir, inevitavelmente, os preconceitos, as inclinações e os interesses em conflito. Ao jurista e ao advogado será impossível, em meio às refregas de ordem ideológica e aos dissídios doutrinários, envenenados pelas paixões e apetites, recolherem-se a uma torre de marfim, aspirando uma posição de
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neutralidade ou de isenção. Temos deveres. Temos obrigações, temos compromisso com a transformação do direito, cuja intocabilidade somente interessa aos detentores do poder, visando consolidá-lo e fortalecê-lo.
Para cumprir, com pugnacidade e galhardia, a sua missão naqueles tempos trevosos, lutando contra tantos fatores adversos, contra os arremessos do arbítrio, contra a expansão absorvente do poder e as fraquezas da justiça, os advogados, numa quadra em que as liberdades essenciais se encontravam sob perigo constante, precisavam se revestir, mais do que nunca, daquela “coragem civil”, a que se referia Dupin, segundo a qual, “são as grandes crises da vida social que tornam o homem capaz dos mais árduos sacrifícios, por obedecer à sua consciência e às suas convicções”.
Foi o que nós, advogados, fizemos, desde aqueles tempos tenebrosos, mesmo aqueles colegas que foram chamados para exercer, temporariamente, um mundo público, como o cargo de Ministro do T.S.E., na quota reservada aos advogados.
A independência, hoje, mais do que nunca, é condição essencial ao proveitoso exercício da nossa profissão. Este pilar nos concede a força necessária para prosseguirmos. Em 64 e em 68. E depois da Constituição de 88, já então num cenário de absoluta normalidade institucional.
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Vamos prosseguir. E a arena estrepitosa do debate forense após a Constituição de 88? Respondo: não obstante as muitas falhas que não são institucionais, pois são humanas, são fraquezas e descompassos com o labor de que estamos investidos, nós, fizemos o certo. Sempre. Validamos as mudanças e aplaudimos a democracia e a república.
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Quanto à arena do debate forense – onde se dá o exercício da advocacia contenciosa – sempre me pareceu certo que o advogado apenas haverá de lapidar o mecanismo social, devendo aceitar o patrocínio profissional não por ter o pleito o timbre da popularidade fácil, ou da atraente vantagem econômica, senão por absoluta reverência à lei. Mas é em nome dessa obediência à legalidade que o advogado tem o dever de intervir no quadro nacional sempre que a autoridade – com disfarce em um legalismo emendado nas sombras, ou com afronta à ordem jurídica, pilares essenciais à instrumentalidade da vida democrática –, tentar usurpar o processo eleitoral, direitos políticos, humanos e sociais. E tudo isso sob a falácia da modernidade, que a globalização abrigaria, para proteger a concentração da riqueza nacional, enfraquecendo o Estado e colocando-o nas mãos das corporações. Penso dessa maneira porque desde cedo aprendi – seguindo o pensamento do saudoso Ministro Victor Nunes Leal – ser atribuição do advogado defender a Constituição da República, mas a esse pretexto não se haverá de identificar o regime que massacre a atividade legislativa, ou – como aconteceu em anos que ficaram para trás, mas que volta e meia ressurge – que tente fragilizar o regime constitucional, com a emergência, breve ou duradoura, de propostas autoritárias, ou de leis iníquas. Tanto assim que, tendo-nos sido vedado pleitear contra literal disposição da lei, ficaram ressalvadas “a boa-fé” e o “direito de fazê-lo com fundamento na injustiça da lei”, podendo os pareceres e os trabalhos forenses dos advogados, inspirar-se “nosprincípios de Direito” e no “bem comum”.
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Reuni, para concluir, princípios e ideias que se conformam com o exercício da advocacia, em um cenário de normalidade institucional, não obstante vivendo sob ameaças, que se perpetuam. Lutamos pela defesa da democracia. Por isso devemos combater a mentira, eis que a mentira é uma poderosa arma contra a democracia.
O afrontamento atual tem como “liberdade de expressão” o funcionamento, fora do Brasil, de um bunker digital, especializado em espalhar ameaças e calúnias, para produzir medo, e cancelar a imagem dos defensores da democracia e dos poderes da república. A nós, advogados, cabe uma grande parcela de compromisso, na defesa da verdade, no combate às fake news.
A defesa da democracia e da república exige, de todos nós, advogados, permanente alerta. Quem se preocupa com a democracia apenas quando se escutam os motores dos tanques – falo no sentido histórico, pois os golpes, hoje, realizam-se, infelizmente, com referendo popular – pode ter apenas uma falsa sensação de estabilidade.
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Não devemos ter hesitação. A História dos anos 30 e a História de 64 e 68, por igual as ameaças bem recentes, felizmente sem sucesso, são verdadeiras aulas sobre as hesitações da democracia, diante de um perigo bem visível no horizonte. Os resultados destas hesitações são bem conhecidos e estão ainda na memória de muitos dentre nós.
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Nosso labor incansável, desde Cícero, contra Júlio Cesar e contra os extremistas, Rui, contra a ditadura, Malhesherbes contra os jacobinos, é lutar pela liberdade. E, ao assim agir, temos a obrigação – na ausência eventual de preceitos legais condizentes com este nosso dever – de invocar os “princípios gerais de direito” e o “bem comum”.
A época em que vivemos, embora tenhamos liberdade, continúa perigosa. Deveremos reconhecer que a tentação totalitária continua vivaz. Os pregoeiros do caos estarão a postos para instrumentalizar os atos de clivagens, sempre anti-democráticos e anti- republicanos. Uma coisa é certa: um único rapel à l’ordre (aviso à ordem), seja ela libertária ou autoritária, não será bastante ou suficiente para nos ajudar a deslocar a extravagância que paira e que chega às sociedades democráticamente constituídas.
Nós, advogados, temos um compromisso indelével, indelegável e insubstituível com a ordem jurídica que juramos sustentar. E para cumprirmos fielmente esta aspiração precisamos desatar muitos laços que buscam nos asfixiar. E como proceder? O conselho é do sábio
Ernest Renan: “A finalidade do mundo é o desenvolvimento do espírito, e a primeira condição para esse desenvolvimento é a liberdade”.